Ministério na contramão

Construir pode ser a tarefa lenta e difícil de anos. Destruir pode ser o ato impulsivo de um único dia.

Criado e aprimorado nos últimos 27 anos, o Código De Trânsito Brasileiro pode estar levando seu maior revés. Isso, em função das propostas de alteração feitas pelo Ministério dos Transportes, através da confusa minuta que está em consulta pública. Destacam-se as seguintes propostas:

  • Retirar a exigência de carga horária mínima de 45 horas de aulas teóricas;
  • Retirar a exigência de carga horária mínima de 20 horas de aulas práticas para as categorias A (moto) e B (carro);
  • O candidato poderá se preparar para a prova prática contratando instrutores autônomos;
  • O candidato poderá fazer exame prático imediatamente após o exame teórico.
  • Retirar a exigência de carros adaptados com duplo comando.

Por mais que o governo negue, tais propostas afetarão diretamente, em primeira instância, as empresas autoescolas. Os centros de formação de condutores (CFC) teóricos serão imediatamente fechados, uma vez que o próprio governo passará a distribuir o conteúdo.

Os CFCs práticos serão afetados nas categorias A e B, as categorias profissionais (C, D e E) não preveem mudanças. E por fim, os instrutores, que passam a poder exercer a atividade como autônomos, todavia com severas perdas, uma vez que não haverá aulas obrigatórias.

A educação no Brasil é negligenciada através de fatores históricos e políticos, com problemas crônicos em nossos sistemas educacionais, com impactos diretos na qualidade de ensino. Não seria diferente no ensino do trânsito.

Redução de Custo para o Cidadão

Nas falas do ministro dos transportes, o número de 80% é frequentemente dito. Este número faz sentido?

Em Sorocaba, o processo total de habilitação de categoria B gira em torno de $2.399,67, sendo:
$499,67 para o Governo (Médico, Psicotécnico, Taxa Teórica, Taxa Prática e Emissão);
$300,00 parte teórica;
$1.600,00 parte prática.

Uma redução de 80% no valor, representaria o valor final de $479,80, inferior às taxas cobradas hoje pelo governo. Significa dizer que renunciamos a todo o ensino? Inclusive dos instrutores autônomos?

Ademais, pessoas de baixa renda terão acesso a instrutores menos preparados, permanecendo no mesmo ciclo, criando uma falsa sensação de democratização e tornando o processo ainda mais caro, uma vez que cada reprova o aluno precisará de mais aulas que o pacote mínimo estabelecido hoje.

A taxa média de aprovação de um CFC em Sorocaba varia de 50% a 70%, com o Detran exigindo o mínimo de 50% de aprovação e possível intervenção em caso de quedas abaixo desse limite. Esses alunos passaram por 20 horas aula, como ficará a situação caso exista o enrijecimento no exame prático proposto na minuta do exame prático? Serão centenas de reais em taxas para o Detran, pessoas frustradas e um trânsito com pessoas documentadas e sem preparo.

Outra fala popular do ministro é que a maioria das pessoas já sabe dirigir.

Como essas pessoas aprenderam se o código atual exige que as pessoas tenham instrução formal para tal? E existe um motivo para tal: as autoescolas são o primeiro e único contato dos cidadãos com o ensino teórico de trânsito. As autoescolas possuem protocolos seguros para o ensino prático, como o duplo comando, outro item extinto na minuta. Logo, onde está a fiscalização atual? O governo está querendo trocar a fiscalização pela facilitação no processo de habilitação? Essas pessoas que terão pouca ou nenhuma formação, ao perderem suas CNHs farão uma nova formação ou voltarão para o estágio inicial de informalidade?

Democratização e Acesso

Em outro dado apresentado é dito: “…54% dos CPF que possuem uma moto não têm CNH”. Nem sempre os veículos são para uso próprio, mas levando em conta que sejam, as pessoas estariam comprando algo que não estão aptas a usar. É como eu já comprar um bisturi sem ser médico. Você seria operado por mim? Mas e se eu estiver andando ao seu lado no trânsito, sem ter a instrução adequada? O veículo se torna uma arma letal, e não apenas para quem está dirigindo, mas para quem participa do trânsito também.

De acordo com o ministro, cerca de 20 milhões de brasileiros dirigem sem habilitação atualmente. Além da já citada questão da fiscalização, foram cruzadas informações com o ministério da Educação?

Segundo o Código de Trânsito Brasileiro (CTB):

Art. 140. Para obter a permissão para dirigir é necessário, entre outros requisitos:

  • I – saber ler e escrever;

Em 2024, o IBGE registrou uma taxa para a população de 15 anos ou mais, de 9,1 milhões de pessoas sem saber ler ou escrever. Renunciaremos à educação novamente? Todo esse debate se concentra no tema educação, independentemente da modalidade. Fato é que boa parte dos 20 milhões de condutores que dirigem sem CNH, permanecerão inaptos para o fazer.

A prova que tudo se resume ao quanto investimos em nossa educação, é outra citação do ministro, na qual ele compara a exigência da autoescola à obrigatoriedade de cursinho pré-vestibular para ingresso em universidades públicas. Nessa linha de raciocínio, podemos findar o ensino médio, uma vez que o importante é avaliar, e isso pode ser feito pelo ENEM.

Podemos transferir toda nossa base de formação aos instrutores autônomos, assim como a modalidade de educação chamada “homeschooling”. Lembrando que esta prática não é legalmente permitida no Brasil porque não há uma lei federal que a regulamente. O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu em 2018 que apenas o Congresso Nacional pode criar regras para o ensino domiciliar, e essa regulamentação ainda não aconteceu. Por qual motivo a educação formal não permite e a de trânsito permitirá? Existe toda uma estrutura em volta do ensino do trânsito, não apenas pegar um carro. Temos planos de aula, teórica e prática, acompanhamento psicológico, e a dedicação deste momento para aprender sobre trânsito.

Comparação com outros lugares

Em meio às entrevistas e debates, muito se tem falado do modelo dos Estados Unidos e Canadá, entre outros países que não exigem autoescolas. Sempre com comparações superficiais, não se comparando o IDH ou condições de ruas e rodovias. Sem contar no ensino teórico, que é introduzido já nas escolas.

A comparação de sistemas inteiros entre países deve ser feita com muitos dados, estudos e tempo de transição para adaptação, pois envolve, dentre outros fatores, a cultura de cada país e como historicamente chegamos até aqui. Um exemplo claro de diferença de sistema entre Brasil e EUA é o SUS, do qual não podemos abrir mão e que nos EUA apresenta uma dinâmica muito diferente.

Segurança

O Brasil está entre os países com mais mortes no trânsito: cerca de 30 mil mortes por ano, segundo dados do Ministério da Saúde e da OMS. O argumento perfeito aqui poderia ser: “veja como a autoescola não resolve”. A construção de um modelo deve ser gradual e aprimorada, rasgar o que foi feito em 30 anos de evolução, de forma abrupta, pode comprometer a segurança de várias maneiras.

Em 2023, o custo estimado com acidentes de trânsito foi de mais de R$ 50 bilhões, segundo o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Boa parte desses custos vai para o SUS.

Basta uma pesquisa no Youtube para ver acidentes ocasionados por parentes ensinando familiares sem duplo comando ou instrução adequada para isso. Exigir uma carga mínima de instrução nivela minimamente a exposição e o treinamento a situações de risco e as regras de trânsito entre todos os “participantes” do jogo.

De 2% a 5% dos exames práticos possuem reprovas por motivos que de interferência do examinador no duplo comando. Esse dado é importante, por medir um aluno que passou por 20 aulas, a incidência de interferência por parte do examinador, em algo determinante, reduz drasticamente. Outros motivos de reprova, como baliza, seta entre outros, não representam risco durante o processo de avaliação.

Não podemos retroceder aos anos 80 e banalizar a segurança, não exigir e fiscalizar o cinto de segurança, crianças entre os bancos, fumar enquanto dirige etc. Da mesma forma, não podemos permitir pessoas minimamente preparadas no comando de um veículo.

Autoescola

As autoescolas proporcionam o primeiro, e por vezes o único, contato formal de condutores com as regras de trânsito e habilidades mínimas de condução. A autoescola não é responsável apenas por ensinar a passar nos exames, essa é uma visão pequena e deturpada da missão da autoescola junto ao cliente e à sociedade.

O Detran acompanha e fiscaliza diversos fatores, como: credenciais, ficha criminal de funcionários, capacidade técnica e dos veículos, atendimento pedagógico e, no nosso caso, psicológico dos alunos.

Empregos

Essa possível “Uberização” do ensino afetará milhões de pessoas, minimizada pelo ministério dos transportes com a proposta do instrutor autônomo. Mas a autoescola gera outros tantos empregos diretos (recepção) e indiretos (limpeza, sistemas, manutenção etc.), empregos estes que serão transferidos para aplicativos, na sua maioria, internacionais.

Mesmo os instrutores autônomos terão seus problemas. Atraídos inicialmente pela promessa de ganho maior, eles não terão mais direitos trabalhistas como: férias, FGTS, vale alimentação e, o principal, o direito de poder ficar doente. Os aplicativos cobrarão em torno de 25% dos valores das aulas. A oscilação no custo dos combustíveis é outro entrave, já que hoje é mantido por conta dos pacotes fechados de aulas, item este que não mais existirá. Os instrutores precisarão levar os alunos para exames práticos, perdendo horas ou períodos inteiros que poderiam ser de aulas, afetando o ganho final.

Propostas possíveis

Diversas propostas podem ser feitas para redução de valores na CNH, de todas as partes: redução no número de aulas obrigatórias, teórica e prática, redução de impostos para a categoria, redução de taxas aos candidatos, transferência da parte teórica para escolas e encerramento dessa atividade em CFC após um tempo determinado, entre outras.

Todavia, não podemos concordar com alterações descomunais e abruptas, buscando puramente populismo. Diversos fatores demonstram isso: tentativa de mudança imediata, comunicação superficial, mudança apenas para categorias A e B, sem alterações para as profissionais.

Podemos conversar mais sobre mudanças para o bem do trânsito e para o bem de quem o utiliza.

Para ajudar a suspender esse absurdo:
https://www.camara.leg.br/enquetes/2567768
Precisa logar com o GOV e CONCORDO TOTALMENTE.

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